quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Capítulo 2

Anônimo

- Barrinha ou amendoim?
- Quero nada não. Obrigado.

Era o terceiro vôo que Nicolas fazia naquela semana. Estava louco para voltar pra casa, mas ainda havia muito trabalho pela frente. Bem-vindo a Curitiba. Bem-vindo a Recife. Bem vindo a Palmas. Bem-vindo ao mundo corporativo, Sr. Nicolas. A rotina agora era essa. Um terno amarrotado, um laptop, uma mochila e... uma caixa vermelha.

- O que essa caixa está fazendo embaixo do meu paletó?

Anônimo

- Por favor, essa caixa é sua?

O senhor sentado à janela fez que não e voltou a cochilar.

Nicolas não lembrava de ter visto ninguém sentado na poltrona do meio. O velho na janela, ele no corredor... de quem seria então a caixa?

- Hmf, detesto essas filas de três assentos. A poltrona do meio sempre vira terra-de-ninguém. - falou em voz alta, esperando que o dono da caixa se desculpasse e retirasse aquele incômodo objeto dali. Mas ninguém se manifestou.

Paula Schuabb

Do lado de fora do aeroporto, Scarlet viu o avião decolar. Ia ficando cada vez menor, rumo ao destino do qual ela acabara de abrir mão. Olhou o sol vermelho.
- A caixa!
Scarlet havia escolhido um novo caminho. Sua caixa vermelha não.

Mário Mendes Neto

E ela seguia, para onde Norma não havia deixado sua Scarlet ir, rumo à primeira escala da viagem.
- Senhor, poderia colocar sua bagagem de mão no compartimento superior ou embaixo da poltrona?
- Que bagagem? - retrucou Nicolas à comissária.
- A caixa, Senhor.
- Que caixa? - fazia-se de desentendido, enquanto suas bochechas assumiam a vermelhidão inegável da caixa.
- Esta ao seu lado, Senhor.
- Não... não é minha.
- É do Senhor? - dirigiu-se a aeromoça ao velho da janela. Ele se limitou a lançar-lhe uma fração de olhar e, carrancudo, negou com uma das mãos.
- Vou recolhê-la então, alguém deve tê-la esquecido - disse a aeromoça enquanto estendia suas mãos para a caixa.
- Espere! - Nicolas interceptou-a, protegendo a caixa.
- O que foi, senhor, algum problema?
- É minha.
- Como? - perguntou a comissária confusa.
- Minha, essa caixa. Minha mesmo, sabe?
- Mas o Senhor não...
- Desculpe - interrompeu-a, rindo nervosamente. É que eu... eu... estava com vergonha - sussurou para a aeromoça - imagina, carregar pra cima e pra baixo essa coisa... tão, tão acesa... vermelhona, não é? Não é à toa que eu a cobri com o paletó.
- Pois bem, Senhor. Poderia então guardá-la em um dos locais adequados? Vamos iniciar o procedimento de pouso.
- Tudo bem, tudo bem.
Nicolas enfiou apressadamente a caixa embaixo da poltrona. Enquanto regulava a fivela do cinto. tentava vasculhar a si mesmo à procura de alguma razão qualquer para o que havia acabado de fazer.

Vinícius

O barulho do motor do avião aumentou tanto que Nicolas, que estava a umas 10 filas da asa, quase ficou surdo. A arremetida foi violenta - depois se saberia que o pouso foi impedido por pombas na pista - e a caixa vermelha escorregou até o fundo do avião. Foi parada pela aeromoça com o pé, sentada em seu banco retrátil perto da porta. Finalmente, a caixa que Scarlet tinha jurado entregar estava em seu poder. O jogo ainda não tinha acabado.

Orrico

"Senhores e senhoras passageiros, sejam todos bem-vindos a Cancún", anunciou o piloto.

A alegria e a descontração de quase todos os passageiros contrastava com o semblante sério de Nicolas.

E clima ensolarado-turístico da cidade não combinava nem um pouco com os três homens que aguardavam a sua chegada.

Anônimo

Ricardo, Antônio e Emanuel. Três companheiros de suruba que a muito não via. Tinha saído sem despedidas pela última vez, em Arraial do Cabo e esse reencontro guardava muitas mágoas do passado.

**************

Gabriel

Gisele tinha começado a trabalhar como aeromoça fazia três anos. Ela, que antes nunca tinha ido além das fronteiras do estado, agora já conhecia mais de 20 países. Disputava com outras colegas as melhores rotas da companhia aérea.

Queria Rio-Paris, Rio-Nova Iorque, Rio-Madri, Rio-Atenas, Rio-Todos os lugares do mundo com os quais sempre sonhou. Cancún fazia parte da lista e era sua primeira vez na cidade.

Como de costume, foi uma das últimas a sair do avião.

- Que caixa é essa, Gi?, perguntou Henry, comissário de bordo pernambucano que trabalhava com ela.
- Ah, são apenas umas bijuterias, respondeu, tentando despistar. Para interromper de vez a conversa, disse que precisava ir ao banheiro, assim que pisou no aeroporto.

No banheiro, guardou a caixa na mochila, imaginando que o homem de terno que alegara ser o dono do objeto ainda podia estar por ali.
Saiu caminhando rápido, em direção ao ponto de táxi. Alguns metros a frente, estava Nicolas, cercado pelos três amigos. Seu olhar cruzou com o de Gisele por alguns segundos. "A porra da caixa", pensou e deu um passo em direção a aeromoça.

Antônio o segurou com um abraço de segurança de boate.
- Porra, cara, faz tempo hein. Desde aquela viagem para Arraial. Lembra?

Anônimo

Foi instante suficiente para atrasar Nicolas em relação passos apressados de Gisele, que atravessou a pista e conseguiu apanhar o primeiro táxi que pôde.
- Hotel Playa del Carmen, por favor.
- Sí, Señorita.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Capítulo 1

Acordou sentindo as patinhas do gato sobre sua cabeça. Estavam tão próximos no travesseiro, sua cabeça e o siamês, que o ronronar parecia vir dela mesma, e não do bicho.

Mário Mendes Neto

Os bigodes do felino roçaram seus cílios, obrigando-a a abrir seus olhos para a penumbra do quarto, atenuada pela presença branca do bichano e pelas listras luminosas que vazavam das frestas da janela.

Anônimo

Quem diria , um dia iria se apegar tanto a Tufo - sim, este era seu nome - o gato de seu ex-namorado, aquele pervertido. No primeiro momento, Tufo era tudo que ela não precisava: uma lembrança viva do que precisava esquecer.

Gabriel

Com um movimento brusco, ela se levantou e ao mesmo tempo colocou o gato para fora da cama. Estava atrasada. Ainda precisava deixar Tufo na casa do ex, antes de correr para o aeroporto.

Paula Schuabb

Um miado e o tempo congelou-se. Foi o suficiente para voltar até o dia em que viu Tufo pela primeira vez. O nojo que sentiu nada se assemelhava ao aperto da despedida que se aproximava. Ela já estava acometida pelo amor aos gatos, coisa que só quem tem um sabe como acontece.

Flávia Fuini

De repente, percebeu que Tufo era a materialização do amor que sentiu, e ainda sente, pelo seu ex. Todo o sentimento, agora suprimido, fora transferido para o gato.

Lívia de Souza Vieira

Impossível não lembrar daquele dia. Logo ela, que nunca morreu de amores pelos bichos, fora presenteada com um lindo gato. Sim, ele era lindo, mas teria passado desapercebido não fosse o autor do presente. Naquele exato momento, ela teve certeza: o amava.

Garoto Maroto

O gato a encarou com seus enormes olhos amarelos sujos de remela e imediatamente gofou uma enorme bola de pêlo. - Os brincos de vovó! Distinguiu a garota no bolo lodoso em seu travesseiro em meio a um rabo de lagartixa e um chiclete amassado.

Nico Puig

Reencontrar as bijuterias de vovó Lenilda fez com que Norma logo parasse de pensar em coisinhas cut-cut como gatos ou cafajestes. A lembrança daquela velha trazia marcas em seu corpo. Suas costas ainda ardiam pelas varadas de marmelo que a maldita lhe sentava antes de dormir.

Thaís

O susto arrancou-a do flashback e a trouxe de volta à realidade. Não sabia o que lhe repugnava mais: o bolo regurgitado por Tufo sobre a cama ou a idéia de ir à casa do ex para deixar o gato.

Como sempre, tinha-se deixado levar pelos pensamentos, e agora estava mais atrasada ainda.

Anônimo

Tentou ser prática, coisa rara em Norma. Ligou para Marcelo, o ex, e deixou um recado na secretária.
- O Tufo está com o Sérgio, meu vizinho, você conhece. Não deu para deixá-lo na sua casa. Disse que você passaria para pegá-lo mais tarde.
Tomou um táxi e foi embora com a bijuteria da Vovó nas mãos.

rodrigo freire

Colocou os óculos escuros, daqueles que cobrem metade do rosto, e não trocou nenhuma palavra com o taxista em todo o trajeto. Ficou concentrada no seu celular, apagando uma a uma as mensagens salvas, os registros de ligações e finalmente os seus contatos. Deixou por último os nomes do Marcelo e o da sua própria casa. Pronto. Norma não existia mais, pelo menos naquele aparelho idiota.

Nos bolsos tinha os documentos, a passagem aérea e dinheiro pra três dias, no máximo. Saiu do carro tão rápido que o taxista nem percebeu que a bijuteria ficou no banco e a mala no bagageiro. Não queria mais aquelas lembranças, aquelas roupas nem aquele nome. Só a caixa vermelha, que segurava com o braço esquerdo, protegendo com seu próprio corpo como se tentasse esconder seu conteúdo do olhar de todas aquelas pessoas horríveis.

Pedro Amorim

E cada olhar parecia dizer: "eu sei o que você está fazendo e sei para onde você está indo"... Impossível! Como poderiam? Nem ela mesma sabia o que estava fazendo. No início, a viagem pareceu uma excelente oportunidade, mas aos poucos foi ficando claro que não passava de uma fuga... E nem precisou da sua terapeuta pra lhe dizer isso.

Raulzito

"Não existe nada mais triste do que um saguão de aeroporto", refletiu Norma enquanto caminhava lentamente. Junto à caixa vermelha, Norma carregava uma angústia por envergonhar-se de sua própria existência. Afinal, pensava naquele momento, não conseguira manter o grande amor de sua vida vivo. Agora, estava ali, só, rumo ao portão de embarque. Embarcaria sem despedidas, sem adeus, sem "volta logo", sem "já estou com saudades" ou "me liga quando chegar". Seria ela e o mundo. Cada passo lhe transmitia a sensação de estar se afastando deste passado recente e doloroso. Precisava de uma revolução em sua vida. De uma reviravolta capaz de transcender todo o sofrimento, transformando dor em esperança. Para tanto, precisava livrar-se de todas as amarras que lhe prendiam ao fim trágico daquele grande amor. Enquanto caminhava, pensou que o primeiro ato emblemático para embrenhar-se neste novo mundo seria mudar seu nome. Um marco. Uma nova identidade que carregaria em si todos os novos atributos que lhe faltaram. A oportunidade de criar um novo "eu" seria sua salvação naquele momento. A partir daquele momento passaria a ser Scarlet. Uma nova mulher rumo a um mundo novo que fora inaugurado ali, naquele saguão de aeroporto.

Anônimo

- Vai despachar a caixa?
- O quê?
- A caixa vermelha?
- Não, não..., respondeu afoita e pegou o cartão de embarque da mão da atendente.
Caminhou até o salão, onde já havia uma fila para entrar no avião.

Anônimo

Enquanto esperava na fila, pensou na sua velha vida que ficava pra trás - na velha Norma. Sempre correta, como seu nome. A criança que nunca sujava o uniforme, que nunca quebrara um dedo. A estudante que nunca ficava em recuperação. A funcionária que nunca se atrasava. Norma, a certinha.

A nova Scarlet não era nada disso, definitivamente.

.

Mário Mendes Neto

Um sorriso levemente ácido brotou em um dos cantos de sua boca. Assaltada por uma sensação única, como se amamentasse um novo alguém, ela embalava a si mesma, renascida. Em meio aos passageiros apressados, arrastando suas malas e angústias, ela saboreava sileciosa e intensamente aquele momento. Ali, convenceu-se de que não se tratava mais de uma fuga, mas um primeiro encontro, com quem alguém que ela começava a conhecer. Era Scarlet.

Segurou a caixa vermelha junto ao peito - ela havia atravessado o raio-x sem problemas ou perguntas. Porém, deu-se conta que havia coisas com as quais não poderia embarcar. E, à medida em que a fila se movia, ela as abandonava. Beijos inesperados no elevador, o aparelho de barbear guardado sobre os esmaltes, cadarços dos tênis entrelaçados aos pés da cama, marcas de dentes na nuca, pizza fria dividida no café da manhã, Tufo. Fragmentos de memória que já não lhe pertenciam mais foram deixados ali, esparramados no salão, para quem quisesse recolhê-los e talvez fazê-los seus. Agora sim, ela estava leve o bastante para voar.

Pedro Amorim

Já sem as memórias do passado e com passos firmes, ela caminhou em direção à sua nova vida. Assim que entrou no avião, respirou fundo... Porém, subitamente a velha Norma voltou a se questionar se aquilo era realmente o certo a fazer. Em um impulso, levantou-se do seu assento e saiu do avião, sem dizer nada às comissárias assustadas.

Lembrou-se do que a terapeuta sempre lhe dizia: "Você não é bipolar, Norma, apenas precisa aprender a se controlar". E, no descontrole que lhe fez sair do avião, lembrou que havia esquecido algo muito importante lá dentro: a caixa vermelha.

**********

Geo

Norma não conseguia entender porque a caixa vermelha seguiu sozinha.
O que fazer agora?
Já não era mais Norma, mas também não chegou a ser Scarlet?
O que lhe sobrara do passado havia ido embora.
O que seria, então, do seu futuro?
Resolveu na sorte:
"Cara, volto pra casa. Coroa, sigo pro mundo."

Pedro H.

Enquanto a moeda girava no ar, sentiu uma taquicardia, uma estranha sensação de vazio, como se tivesse perdido o chão. Antes que a moeda pousasse em sua mão esquerda, seu celular começou a tocar.

Aquela mulher sem nome achou estranho ouvir o Pour Elise saindo abafado do bolso de seu casaco. Afinal, ninguém nunca ligava pra ela!

Era estranho que algum daqueles nomes inúteis digitados em sua agenda resolvera telefonar para ela logo agora que tinha resolvido apagá-los de sua memória.

Ao som de Beethoven, a moeda pousa na mão da mulher. Confusa, ela fecha o punho esquerdo com força, adiando por um instante a decisão do seu destino.

Preferiu atender o telefone.

- Alô, Scarlet? Aqui quem fala é o Tufo.

Mário Mendes Neto

- Hã?
- Alô, Norma? Aqui quem fala é o Marcelo.
Por um instante, ela ouviu suas próprias fantasias, antes da realidade e frio no estôgamo que o telefonema do ex-namorado lhe provocaram.
- O que é que foi?
- Só pra dizer que já peguei o Tufo na sua vizinha e trouxe para a casa da minha tia. E...também perguntar se chegou bem. Seja lá onde você tenha ido, não é?
- Não acho que seja algo com que você se preocupe muito... ou sequer seja se interesse. Apesar disso, obrigada por ficar com Tufo.
Desligou abruptamente o telefone, simulando uma queda não programada. Em um misto de euforia e raiva, ela já não sabia mais o que sentia. Uma coisa não era: indiferença. E isso era o que a mais lhe incomodava. "Já chega", pensou. Vasculhou novamente o bolso à procura da moeda que guiaria sua vida e identidade dali por diante. Encontrou, porém, no fundo do bolso uma lembrança ainda guardada, dobrada três ou quatro vezes e com as bordas gastas de tanto ser relida. Seus dedos ávidos, por um instante, esqueceram a moeda e puseram-se a abrir aquele pedaço marcado de papel. Tal qual um alucinógeno, ela tragava, talvez pela centésima vez, aquelas palavras amassadas.

Lívia de Souza Vieira

“Esta caixa é seu maior tesouro. Cuide muito bem dela. Com carinho, papai."

Ela sentiu um calafrio ao pensar que, naquele exato instante, seu maior tesouro poderia ter se perdido para sempre.